1 — Parece que a fé não precisa se manifestar por meio de condutas, hábitos ou comportamentos, pois todo ato é concreto e visível, ao passo que a fé é abstrata e invisível1, razão porque a fé não necessitaria se expressar por nossas ações.
2 — Além disso está escrito que pela graça somos salvos, e a graça não nos vem por atos, senão somente pela fé.2
3 — No mais, está escrito3 que para nos salvarmos basta que por nossos lábios confessemos nossa fé em Jesus Cristo como único e suficiente salvador, independentemente do que dali em diante façamos.
MAS EM CONTRÁRIO:
“(…)VENHO EM BREVE PARA DAR A CADA UM CONFORME AS SUAS OBRAS.” (Apocalipse 22, 12);
E ainda:
“(…) O FILHO DO HOMEM HÁ DE VIR NA GLÓRIA DE SEU PAI COM SEUS ANJOS, E ENTÃO RECOMPENSARÁ A CADA UM SEGUNDO SUAS OBRAS.” (São Mateus 16, 27)
SOLUÇÃO:
A virtude da fé está na prática e não na ideia, pois quem não se dispõe a agir conforme aquilo em que acredita não tem fé, e justamente por isso é que hão de andarem sempre juntas a fé e as obras da fé4 que emergem dos atos pelos quais os fiéis manifestam, na prática, a sua adesão à vontade Divina, e por meio dessas práticas amam, obedecem e glorificam a Deus, como disse Cristo:
“POR QUE VOCÊS ME CHAMAM SENHOR, SENHOR, MAS NÃO FAZEM O QUE EU DIGO?” (São Lucas 6, 46).
Crer em Deus não cabe aos infiéis justamente por não possuírem a prática dos atos e das condutas próprias da fé.
Fiel é aquele que tem a fé como hábito.
O dom da fé não pode ser resumido numa mera noção intelectual do sacrifício de Cristo, pois isto até os inimigos da cruz testemunham.
Crer é assentir de maneira prática, efetiva, aderindo a tudo e em tudo que Deus deseja que por meio dele realizemos.
Ora, é o intelecto que move a vontade e os atos.
Todavia, se a fé contida no intelecto não for forte o suficiente para mover nossas ações, pensamentos, sentimentos e condutas, tal não passará de uma mera ideia inútil e vazia, pois a fé autêntica purifica os corações aos nos unir a Deus.
Nada vale sermos fiéis nas palavras se não temos a menor vontade de sermos fiéis nas atitudes, pois os atos exteriores revelam aquilo que está em nosso interior, e aquele que diz ter fé apenas no pensamento não a tem verdadeiramente, senão, apenas numa vaga ideia sem força suficiente para mover os atos da vida de acordo com aquilo que se diz acreditar.
Aquele que realmente crê possui também a predisposição para realização de atos condizentes com essa fé, no que então se responde as questões acima:
1 — Uma coisa pode ser invisível e abstrata, mas o seu resultado prático ser um efeito concreto.
Assim é o amor que embora seja abstrato e invisível em si mesmo, só poderá existir caso se manifeste por atos concretos e visíveis de caridade, perdão, renúncia, obediência, reverência, partilha ou por mesmo um abraço ou beijo sincero, dentre outras atitudes.
Por isso o Santo Apóstolo Paulo sempre vincula a utilidade e autenticidade da fé abstrata e invisível aos seus efeitos concretos e visíveis:
“CERTA É ESSA DOUTRINA E QUERO QUE ENSINES COM CONSTÂNCIA E FIRMEZA, PARA OS QUE ABRAÇAM A FÉ EM DEUS SE ESFORCEM POR SE APERFEIÇOAR NA PRÁTICA DO BEM. ISTO É BOM E ÚTIL AOS HOMENS.” (Tito 3, 8);
“NÃO CESSO DE DAR GRAÇAS A DEUS E LEMBRAR DE TI EM MINHAS ORAÇÕES, AO RECEBER A NOTÍCIA DE SUA CARIDADE E DA FÉ QUE TENS NO SENHOR JESUS E EM TODOS OS SANTOS, PARA QUE ESTA TUA FÉ, QUE COMPARTILHA CONOSCO, SEJA ATUANTE E FAÇA CONHECER POR TODO BEM QUE SE REALIZA EM NÓS POR CAUSA DE CRISTO.” (Filêmon, 1, 4-7)
“URGE TAMBÉM QUE OS NOSSOS APRENDAM A APLICAR-SE ÀS BOAS OBRAS PARA ATENDER A NECESSIDADE DOS MAIS POBRES. ASSIM NÃO FICARÃO INFRUTOSOS.” (Tito 3. 14)
Da fé só se pode dizer existente e genuína se frutificar em atos exteriores concretos e visíveis.
2 — A salvação que nos chega pela fé veio antes por UM ATO de amor extremo no qual o próprio Deus ofertou seu Filho em sacrifício para que nenhum de nós perecesse.
Logo, a fé que nos vem pela graça é fruto de um ATO DA CARIDADE DIVINA, pois sem o ato exterior do sacrifício do Cristo, nada valeria nossa fé.
Mas se é o fruto dá testemunho da existência da árvore, conclui-se que a fé não pode existir sem o ato que lhe testemunhe.
Além disso, o Santo Apóstolo jamais escreveu que somos salvos SOMENTE pela graça ou SOMENTE pela fé, mas que (…) PELA GRAÇA SOMOS SALVOS.”5
Essa graça que conduz a perfeição e a utilidade da fé só se manifesta por meio dos atos emanados da caridade, pois:
“A CARIDADE NÃO PRATICA O MAL CONTRA O PRÓXIMO. PORTANTO, A CARIDADE É O PLENO CUMPRIMENTO DA LEI.” (Romanos 13, 10)
REALMENTE, O SERVIÇO DESSA OBRA DE CARIDADE NÃO SÓ PROVÊ AS NECESSIDADES DOS IRMÃOS, MAS É TAMBÉM UMA ABUNDANTE FONTE DE AÇÕES DE GRAÇAS A DEUS.” (II Coríntios 9, 12)
A obra perfeita da fé é a caridade, pois sem caridade não adianta orar, rezar, dar esmola, partilhar os bens, dar comida, roupa remédio, pois o bem que isso proporciona sem caridade é temporário.
Quando realizamos algo com caridade, os efeitos benéficos desses atos se perpetuam no céu e na terra.
Fé útil e operante é que realiza o movimento da conversão, e nos retira da condição de infiel e nos coloca na de fiel.
Ora, todo movimento de mudança só se realiza por atos concretos, sejam públicos ou privados.
Não há mudanças apenas na ideia, se os atos, hábitos e os pensamentos permanecem os mesmos. Se a fé é o início da caminhada com Cristo, o ato de fé é o produto, a finalidade da graça Divina em nossas vidas, cujo resultado útil é a santificação, porque:
“(…) CRISTO SE ENTREGOU POR NÓS A FIM DE NOS RESGATAR DE TODA INIQUIDADE, NOS PURIFICAR E NOS CONSTITUIR SEU POVO DE PREDILEÇÃO, ZELOSO NA PRÁTICA DO BEM.” (Tito 2. 14)
A fé é o dom Divino que atinge o ser humano em sua plenitude, em sua alma, vontade, intelecto e atos.
Só assim se pode dizer que a fé é completa e perfeita, quando retira o ato humano da infidelidade e o conduz a fidelidade, tirando o indivíduo do estado de oposição contra Deus e o recoloca em estado de adesão à vontade Divina que o predispõe ao amor, e todo amor é prático, pois só existe de fato, e só se realiza no ato de amar.
De nada vale rezar para que Deus não deixa um semelhante passar fome, sede e frio, se temos comida e não partilhamos; se temos água e não lhes saciamos a sede; e se temos agasalho e os deixamos perecer de frio ao relento enquanto nos mantemos aquecidos.
Por isso, não pode haver divisão entre fé e ação porque é pela ação ordenada que manifestamos nossa fé em Deus.
3 — O que existe em nosso interior há de se expressar externamente, “(…) POIS A BOCA SÓ DIZ DO QUE ESTÁ CHEIO O CORAÇÃO.” (São Mateus 12, 34)
Mas se a boca proclama o que não existe em nosso interior e o que não estamos dispostos a realizar é porque somos mentirosos diante de Deus, incorrendo em condenação ainda mais severa:
“É A TUA BOCA QUE TE CONDENA, E NÃO EU; SÃO TEUS LÁBIOS QUE DÃO TESTEMUNHO CONTRA TI MESMO.” (Jó 15, 6); “PORQUE EM SEUS LÁBIOS NÃO HÁ SINCERIDADE, SEUS CORAÇÕES SÓ URDEM PROJETOS ARDILOSOS. A GARGANTA DELES É COMO UM SEPULCRO ESCANCARADO E COM A LÍNGUA DISTRIBUEM LISONJAS.” (Salmos 5, 10) “[…] MINHA LÍNGUA NÃO PROFERIRÁ MENTIRAS.” (Jó 27, 4); “[…] QUE O SENHOR EXTIRPE OS LÁBIOS HIPÓCRITAS E A LÍNGUA INSOLENTE.” (Salmos 11, 4)
Assim, aquele que não confessar a sua fé por suas ações, negou a fé que proclama com os lábios:
“(…) AQUELE QUE NÃO CUIDA DOS SEUS, E PRINCIPALMENTE OS DA PRÓPRIA CASA, NEGOU A FÉ, E É PIOR DO QUE UM INCRÉDULO.” (1 Timóteo 5,8).
Quem crê, mas não age conforme sua fé, crê em vão:
“LEMBRO A VOC~ES, IRMÃOS, DO EVENGELHO QUE ANUNCEI, E QUE VOCÊS RECEBERAM, NO QUAL PERMANECEM FIRMES, E PELO QUAL SERÃO SALVOS SE GUARDARAM COMO LHES ANUNCIEI. DE OUTRA FORMA, TERÃO ACREDITADO EM VÃO.” (1 Coríntios 15,1-2)
1 Ora, a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não veem.” (Hebreus 11.1-3)
2 LUTERO. Obras Selecionadas, vol. VIII. Comentários ao Novo Testamento – Prefácio as epístolas de Judas e Tiago, ano 1.546, p. 131, tradução: Walter Schlupp.
3 Se com a tua boca confessares ao Senhor Jesus, e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo. (Romanos 10. 8,2)
4 “DIANTE DE DEUS, PENSAMOS CONTINUAMENTE NAS OBRAS DA VOSSA FÉ, NOS SACRIFÍCIOS DA NOSSA CARIDADE E NA FIRMESA DA VOSSA ESPERANÇA EM NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, SOB O OLHAR DE DEUS, NOSSO PAI.” (I Tessalonicenses 1.3)
5 Esse pensamento errôneo veio com a reforma protestante, nos idos de 1.530,onde se defende a perigosa teoria de que a fé pode ser separada dos atos humanos. (LUTERO. Obras Selecionadas, vol. VIII. Comentários ao Novo Testamento – Prefácio as epístolas de Judas e Tiago, ano 1.546, p. 131, tradução: Walter Schlupp) Sobre esse tema, já decretou a Igreja em sua autoridade, que: “819. Cân. 9. Se alguém disser que o ímpio é justificado somente pela fé, entendendo que nada mais se exige como cooperação para conseguir a graça da justificação, e que não é necessário por parte alguma que ele se prepare e disponha pela ação da sua vontade — seja excomungado.” [ CONCÍLIO DE TRENTO. ANOS 1.545-1.563. cfr. n° 798. 801, 804]