CONVINHA DEUS NASCER?

 

1 — Parece que não convinha a Deus, na Pessoa de Cristo, o nascimento, pois o que é eterno tem sua existência desde sempre e para sempre, o que lhe torna desnecessário o ato de nascer.

2 — No mais, Deus é o alfa e ômega[1], início e fim de todas as coisas, o que se opõe ao ato de nascer, pois quem nasce começa existir através de algo preexiste ao ser nascido, e nada, nem ninguém poderia existir antes de Deus.

3 — Além disso, nascer numa humanidade o sujeitaria a estar, como filho, antes da idade da razão, submisso a autoridade de sua mãe, Maria, e seu padrasto José[2], o que não convinha a Deus.

MAS EM CONTRÁRIO:

UMA VIRGEM CONCEBERÁ, E DARÁ A LUZ A UM FILHO QUE SE CHAMARÁ EMANUEL, QUE SIGNIFICA DEUS CONOSCO. (Isaías 14)”

NO PRINCÍPIO ERA O VERBO; E O VERBO ESTAVA JUNTO DE DEUS; E O VERBO ERA DEUS.[3] TUDO FOI FEITO POR ELE, E SEM ELE NADA FOI FEITO. E O VERBO SE FEZ CARNE E HABITOU ENTRE NÓS, E VIMOS SUA GLÓRIA, A GLÓRIA QUE O FILHO ÚNICO RECEBE DO PAI, CHEIO DE GRAÇA E DE VERDADE. (S. João 1, 1-14); NELE HABITA CORPORALMENTE TODA PLENITUDE DA DIVINDADE.” (Colossenses 2.9)

SOLUÇÃO:

Cada coisa convém aquilo que pertence a sua própria essência, e sendo a essência de Deus, o Amor[4], convém ao Amor habitar no ser amado, tornando-se eternamente unido à ele.

O Amor não é egoísta, não vive em si, por si ou para si, pois sendo a virtude máxima da perfeição[5], se expande à medida em que é compartilhado[6].

Por isso, convinha ao Amor nascer em nossa natureza, para que unida a sua natureza divina, fossem numa só Pessoa, unas eternamente, a Divindade e a humanidade[7]; o Criador e a espécie magna da sua criação, representante de todas as demais espécies e obras criadas, e a única que carrega em si a imagem e semelhança do seu Criador.[8]

Sendo a humanidade a imagem de Deus, convém que a imagem esteja unida ao modelo para que no distanciamento de um com outro, essa imagem não se ofusque e se deforme até vir a se apagar:

DEUS NOS CONCEDE UM FAVOR DE QUE AS DEMAIS CRIATURAS ESTAVAM PRIVADAS, ISTO É, A MARCA DA SUA PRÓPRIA IMAGEM, UMA PARTICIPAÇÃO NO SER RACIONAL DO PRÓPRIO VERBO, DE TAL MODO QUE REFLETIDA EM NÓS ESSA IMAGEM, NOS TORNAMOS RACIONAIS EXPRESSANDO A INTELIGÊNCIA DE DEUS, TANTO QUANTO DO PRÓPRIO VERBO, EMBORA EM GRAU LIMITADO.” (Santo Atanásio. ANTOLOGIA A CRIAÇÃO E A QUEDA. Epístola XXXIX, p. 7, anos 328-373)

Todavia, o espelho no qual víamos a imagem divina da perfeição refletiva em nós, restou quebrado quando a humanidade[9], abandonando voluntariamente o Amor e a Bondade, tornou-se incapaz de reconhecer e interagir com o Amor e a Bondade, senão quando novamente reunida à estes.

Convinha então ao Amor nascer em nossa natureza, para que esta, unida à sua natureza Divina, cuja essência é o Amor e a Bondade, fosse numa só Pessoa, a Divindade humanizada e a humanidade Divinizada, na comunhão indissolúvel do Amor com o ser amado, como na figura de um matrimônio.[10]

O Amor verdadeiro sempre busca pelo ser amado e dele jamais desiste.

Assim, sem alterar sua natureza, o Amor tomou para si a nossa natureza, oferecendo-se nela como sacrifício de vida eterna, e ao se fazer um de nós, tomou para si, sem culpa, nossa condenação, e purgando nosso débito, nos reconciliou com a vida eterna:

ELE NOS RECONCILIOU NO CORPO FÍSICO DE CRISTO, POR MEIO DA MORTE, PARA VOS APRESENTAR SANTOS, INCULPAVEIS E ABSOLVIDOS DE QUALQUER ACUSAÇÃO DIANTE DELE.” (Colossenses 1. 22)

E por ser Amor, não convinha a Divindade abandonar a humanidade, ainda que esta tenha incorrido voluntariamente na corrupção, pois:

[…] A RENOVAÇÃO DA CRIAÇÃO É LEVADA A EFEITO PELO MESMO VERBO QUE A CRIOU NO INÍCIO.” (Santo Atanásio. ANTOLOGIA A CRIAÇÃO E A QUEDA. Epístola XXXIX, p. 5, anos 328-373),

Nisso se responde as questões acima:

1 — Convinha Deus nascer, morrer e ressuscitar para provar que só o eterno e imortal tem o domínio absoluto sobre a vida e a morte[11], podendo nascer mesmo tendo sempre existindo, e morrer sem perder a disposição sobre sua própria vida, podendo recobrá-la quando lhe aprouvesse.

Mas também, e principalmente, convinha Deus nascer numa humanidade para estabelecer a comunhão entre o Divino e humano; o finito e o infinito; o perfeito e o imperfeito, o completo e o incompleto, o imanente e o transcendente e a comunhão entre o tempo e a eternidade para que o desamor pudesse se reencontrar com o amor e a morte pudesse se reencontrar com a vida.

CONVINHA NASCER, NÃO POR ELE, MAS POR TODOS NÓS, pois a humanidade não poderia alcançar a remissão dos seus pecados, senão, através da humanidade na qual habita o próprio Verbo Divino, a qual é dada em oferta de sangue para purificação dos pecados de sangue por nós cometidos. [12]

Cristo não queria salvar a humanidade de outro modo, senão, através a própria humanidade na qual ele habita, pois se o remédio só é eficaz quando aplicado no corpo do paciente enfermo, é a humanidade incorrupta de Jesus, o remédio para a humanidade corroída pela prevaricação e morte.

2 — A Divindade não poderia ter sido concebida e gerada por uma mulher se não tivesse realmente assumido a natureza humana.[13]

Nisso se denotam três coisas:

Uma: A geração e o nascimento da Pessoa Divina do Cristo foi o testemunho material E VISÍVEL de que Deus, de fato, se encarnou, tomando para si nossa natureza, passando a existir no tempo, e vindo a ser contado dentre os seres humanos sem deixar a eternidade e a imortalidade, pois ao ser concebido e nascer, Ele não se excluiu de sua Divindade, como está escrito:

NELE HABITA CORPORALMENTE TODA PLENITUDE DA DIVINDADE.” (Colossenses 2.9)

Duas: A geração e nascimento não marcam o início da existência do Ser Divino que é eterno, MAS O COMEÇO DA SUA EXISTÊNCIA EM NOSSA HUMANIDADE, vez que somente à partir disso, a Pessoa Divina do Filho passa a existir num corpo humano semelhante ao nosso.[14]  

E três: Uma humanidade só pode ser concebida e gerada na natureza humana que existia antes dela, como disse o sábio:

CRISTO TEM DUAS NATUREZAS. UMA QUE RECEBE ETERNAMENTE DO PAI E A QUE RECEBEU TEMPORALMENTE DA MÃE, POR ONDE, E NECESSARIAMENTE, DEVEM SER-LHE ATRIBUÍDAS DUAS NATIVIDADES: A PELA QUAL ETERNAMENTE NASCE DO PAI E A PELA QUAL NASCEU TEMPORALMENTE DA MÃE.” (AQUINO. Santo Tomás. SUMA TEOLÓGICA. Q 35. Art. 2° DA NATIVIDADE DE CRISTO. Livro IIa IIIe)

A natureza humana em Adão, foi criada antes que o Verbo de Deus nela se encarnasse.

Todavia, a Divindade tomou essa natureza humana desde sua concepção no ventre santíssimo da Virgem, sendo que a imortalidade e a eternidade, atributos próprios da Divindade, por conta da união entre as naturezas Divina e Humana em Cristo, passam assim a também nos pertencer por participação no ser Divino.

3 — Era necessário que o Filho Divino, ao se encarnar, viesse à terra como servo, e não como Senhor[15], e tal como servo, convinha se colocar em situação de servidão e obediência ao Pai Divino, e um dos mandamentos eternos do Deus Pai Criador, consiste em “HONRAR PAI E MÃE.[16]

Por isso, se diz sobre Cristo, enquanto criança:

E O MENINO CRESCIA, E SE FORTALECIDA EM ESPÍRITO, CHEIO DE SABEDORIA; E A GRAÇA DE DEUS ESTAVA SOBRE ELE. ORA, TODOS OS ANOS IAM SEUS PAIS A JERUSALÉM À FESTA DA PÁSCOA; E, TENDO ELE JÁ DOZE ANOS, SUBIRAM A JERUSALÉM, SEGUNDO O COSTUME DO DIA DE FESTA. E DESCEU COM ELES, E FOI PARA NAZARÉ, E ERA-LHES SUJEITO[17]. E SUA MÃE GAURDAVA NO SEU CORAÇÃO TODAS ESTAS COISAS.” (São Lucas 2. 40-42 e 51)

Mas isso temporariamente, até o sacrifício da cruz, pois ao subir ao Céu, sentou-se à direita do Pai em igualdade de condições, porque ele é a Imagem perfeita do Pai, e imagem perfeita que nada lhe falta do modelo, sendo o Filho, a personificação da Lei e da Justiça, revestido de toda honra e poder, em igualdade com o Pai.[18]

 

SE A DOR DE CRISTO NA CRUZ FOI A MAIOR JÁ SUPORTADA?


[1] “Eu sou o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Começo e o Fim. (Apocalipse 22, 13)”  “Não sois vós, Senhor, desde o princípio, o meu Deus, o meu Santo, o Imortal? (Habacuc 1, 12)”

[2] . (Lc 2. 40-51)

[3]S. João 1, 1-14

[4] Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor… (I São João 4.8)

[5] Acima de tudo, revesti-vos do amor, que é o vínculo da perfeição” (Colossenses 3.14)

[6] Os que criam mantinham-se unidos e tinham tudo em comum. Vendendo suas propriedades e bens, distribuíam a cada um conforme a sua necessidade. Todos os dias, continuavam a reunir-se no pátio do templo. Partiam o pão em casa e juntos participavam das refeições, com alegria e sinceridade de coração, louvando a Deus e tendo a simpatia de todo o povo. E o Senhor lhes acrescentava diariamente os que iam sendo salvos.” (Atos 2.44-47)

[7] Existe uma só Pessoa do Filho na Trindade, a qual, após se encarnar em nossa matéria natural por meio de sua geração e nascimento, tornou-se inseparavelmente, e simultaneamente Deus e Homem, uma só Pessoa, possuindo duas naturezas distintas, que não se anulam, não se conflitam e não se excluem: “existe um só Filho: Deus e homem ao mesmo tempo, conforme proclamado pela Igreja desde o Concílio de Calcedônia:

“Desde aquele início no qual o Verbo se fez carne no útero da Virgem, jamais existiu entre as duas naturezas divisão alguma e durante todas as etapas do crescimento do corpo as ações sempre tenham sido de uma única pessoa, todavia não confundimos, por mistura alguma, o que foi feito de maneira inseparável, mas percebemos pela qualidade das obras que cada coisa seja própria de cada forma. Embora, de fato, seja um só o Senhor Jesus Cristo e, nele, uma única e a mesma seja a Pessoa da verdadeira divindade e da verdadeira humanidade..” (DH 317 e 318)

[8] Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra” (Gênesis 1. 26-28)E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. (Gênesis 1, 26)

[9] G~enesis 1 e 2.

[10] “Por isso, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois constituirão uma só carne (Gn 2,24). 32. Esse mistério é grande, quero dizer, com referên­cia a Cristo e à Igreja. (Efésio 5* 31 e 32)

[11] https://igrejamilitante.com.br/index.php/deus-que-e-imortal-morreu-na-cruz/

[12] Isto é o meu corpo oferecido em favor de vós. (São Lucas 22, 19)

[13] AQUINO. Santo Tomás. SUMA TEOLÓGICA. Q 35. Art. 1° DA NATIVIDADE DE CRISTO. Livro IIa IIIe.

[14] E o Verbo se fez carne e habitou entre nós,” (São João I. 1, 28) Se fez, porque até aquele momento, a Divindade ainda não tinha assumido nossa natureza humana.

[15] Sendo ele de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens. E, sendo exteriormente reconhecido como homem, humilhou-se ainda mais, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso, Deus o exaltou soberanamente e lhe outorgou o nome que está acima de todos os nomes,” (Filipenses 2. 6 -9)

[16] ÊXODO 20.12.

[17] Estar sujeito ou sujeição. No grego koiné, língua usada para escrever esse relato, ὑποτασσόμενος (upotassomenos), que significa se colocar em situação de obediência, sujeitar-se a obediência de outrem, no caso, José e Maria:

 https://biblehub.com/lexicon/luke/2-51.htm

[18] Esplendor da glória (de Deus) e imagem do seu ser, sustenta o universo com o poder da sua palavra. Depois de ter realizado a purificação dos pecados, está sentado à direita da Majestade no mais alto dos céus, (Hebreus 1, 3)” “Esse Jesus Cristo, tendo subido ao céu, está assentado à direita de Deus, depois de ter recebido a submissão dos anjos, dos principados e das potestades. (I São Pedro 3, 22)”

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