1 — Parece que não convinha Cristo ser levado ao deserto para se deixar tentar, pois maior honra cabe ao soldado, que em sua perícia se apresenta preparado e escolhe local apropriado para o combate, que aquele que se apresenta fragilizado e escolhe local difícil e inóspito para o confronto.
2 — No mais, toda e qualquer tentação a Deus é inútil, pois Deus não pode pecar, razão porque sendo Cristo, Deus[1], não convinha ter se deixado tentar, pois está escrito: “[…] DEUS NÃO PODE SER TENTADO PELO MAL E A NINGUÉM TENTA.” (São Tiago 1. 12 e 13)
3 — Por fim, parece que se deixar tentar pelo inimigo das nossas almas em nada contribuiu para a salvação da humanidade.
MAS EM CONTRÁRIO:
JESUS FOI LEVADO PELO ESPÍRITO AO DESERTO PARA SER TENTADO PELO DIABO, E DEPOIS DE JEJUAR QUARENTA DIAS E QUARENTA NOITE, TEVE FOME. (São Mateus 4. 1-10)
SOLUÇÃO:
Ao tomar nossa natureza adâmica, o Verbo Divino possibilitou ao ser humano unir-se definitivamente a Deus, e assim, toda humanidade decaída vinda de Adão é agora santificada na humanidade divinizada assumida por Cristo.
E porque Deus se fez homem e santificou nossa carne, podemos agora ressuscitar na mesma humanidade em que morreremos:
“NÃO TERÍAMOS ABSOLUTAMENTE PODIDO APRENDER OS MISTÉRIOS DE DEUS SE O NOSSO MESTRE, PERMANECENDO VERBO, NÃO SE TIVESSE FEITO HOMEM. PORTANTO, É PELO SEU PRÓPRIO SANGUE QUE O SENHOR NOS RESGATOU, E DEU SUA ALMA PELA NOSSA ALMA E SUA CARNE PELA NOSSA CARNE, E EFUNDIU O ESPÍRITO DO PAI PARA REALIZAR A COMUNHÃO ENTRE DEUS E OS HOMENS, FAZENDO DESCER DEUS ATÉ OS HOMENS PELO ESPÍRITO, E ELEVANDO OS HOMENS ATÉ DEUS PELA SUA ENCARNAÇÃO.” (IRINEU de Lyon. Santo. CONTRA AS HERESIAS, Livro V. 1,1 p, 248/9, anos 130-202)
O Espírito Santificador, que está com e no Verbo Encarnado, santifica a humanidade que nasce, morre e ressuscita em Cristo[2] que é o primogênito dos homens que ressuscitou para vida eterna, como Adão, outrora, foi o primogênito da humanidade que sucumbiu diante da morte. Por isso, confere-se a Jesus o Título de NOVO ADÃO:
“O PRIMEIRO HOMEM, ADÃO, FOI FEITO ALMA VIVENTE; O SEGUNDO ADÃO É ESPÍRITO VIVIFICANTE. (I Coríntios 15, 45)
“ASSIM COMO EM ADÃO TODOS MORRERAM, EM CRISTO TODOS REVIVERÃO.” (I Coríntios 15, 22)
Contudo, como o primeiro Adão fora vencido pelo pecado quando habitava o paraíso, incumbia ao novo Adão vencer o pecado habitando no deserto.
Ora, O PARAÍSO ERA UM JARDIM, E JARDIM E DESERTO SÃO REALIDADES TOTALMENTE OPOSTAS, tal como Adão, o pai da humanidade decaída; e Cristo, o Pai da humanidade redimida, no que se responde as questões.
1 — Se Adão, o primogênito de Deus na criação, fora humilhado pela antiga serpente, sucumbindo à tentação e morte, enquanto no paraíso, aprouve a Cristo, o primogênito de Deus na ressurreição para vida eterna, reconstituir a honra humana perdida em Adão, vencendo a serpente no deserto. Ora, maior honra e glória há naquele que vence na adversidade.
Como disse Irineu:
“A FORÇA MANIFESTA TODO O SEU PODER NA FRAQUEZA, TORNANDO MELHOR AQUELE QUE, PELA FRAQUEZA, CONHECE O PODER DE DEUS.” (IRINEU de Lyon. Santo. Adversus Haeresis, Livro V. 1,1 p. 248/9, ano 130-202)
Se Adão conduziu a humanidade da virtude à corrupção, Cristo a recapitula, e a reconduz da corrupção à perfeição, da desobediência à obediência, da falta de confiança em Deus à confiança total no Criador, criando a possibilidade da carne se restabelecer na plenitude da justiça e beatitude originária.
Adão foi derrotado cercado de honra e glória, tendo a seu dispor o melhor deste mundo privilegiado pela beleza, pelos alimentos, pelos frutos, pelas límpidas águas e por todo esplendor do paraíso.[3]
Mas Cristo venceu no deserto quando estava faminto, sedento, sujo, ofegante, sujeito ao calor escaldante de dia e frio intenso a noite, cercado de solidão, tristeza e fadiga, porém, totalmente entregue a vontade do Pai.
Adão celebrou a desobediência a Deus aceitando o manjar servido pela serpente[4], ao passo que Cristo celebrou a obediência e a derrota da serpente com o manjar que veio do céu, servido pelos anjos.[5]
Assim, se em Adão a humanidade fora humilhada pelo diabo no paraíso, em Cristo, essa mesma humanidade, humilhou o diabo no deserto, e se a derrota de Adão custou o paraíso, o triunfo de Cristo no deserto nos reabriu a porta desse paraíso.
2 — Cristo não foi tentado em sua divindade que é imune ao pecado e a tentação, mas em sua humanidade unida a sua divindade. E o fez, para que ninguém se julgue a salvo das tentações, e, também, para nos ensinar que não há vitória possível a qualquer humanidade que não esteja unida em Deus, e com Deus.
Cristo é uma pessoa única dotada de duas naturezas,[6] Divina e humana, e assim, ele pôde perfeitamente agir numa ou noutra natureza, sem precisar abrir mão ou se separar da outra.
Logo, ser tentado é uma condição própria de toda natureza humana, para que nessa natureza humana, ele também desse testemunho de sua divindade ao exercer toda sua autoridade sobre o tentador lhe ordenando:
“NÃO TENTARÁS O SENHOR TEU DEUS. (São Mateus 4. 5 e 6)
3 — Se no jardim do paraíso toda humanidade foi vinculada à morte por causa da desobediência do primeiro Adão, era justo e convinha que aquele que é Deus e se fez homem por nós, o segundo Adão, no deserto, vencendo a mesma tentação pela sua obediência, começasse a romper as cadeias da morte que aprisionam a humanidade, consumando essa liberdade na cruz:
“PORQUE A MORTE REINAVA SOBRE A CARNE, ERA PRECISO QUE ELA FOSSE ABOLIDA POR MEIO DA CARNE, PARA QUE O HOMEM FOSSE LIBERTADO DE SUA OPRESSÃO. O VERBO ENTÃO, SE FEZ CARNE, PARA DESTRUIR POR MEIO DA CARNE O PECADO, O QUAL POR OBRA DA CARNE ADQUIRIU PODER, DIREITO DE PROPRIEDADE E DOMÍNIO SOBRE OS HOMENS, PARA QUE O PECADO NÃO EXISTISSE MAIS ENTRE NÓS.” (IRINEU de Lyon. Santo. Demonstração da Pregação Apostólica Livro I. 31 p. 54, ano)
Em Adão, a humanidade era criança, e seu senso de justiça não estava ainda desenvolvido, quando tomado pela vaidade fora facilmente ludibriado pela serpente.
Já em Cristo, a humanidade é elevada a maturidade pela humildade que impediu que essa mesma humanidade assumisse novamente posturas arrogantes contra Deus.[7]
[1] No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus. ” o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos sua glória, a glória que o Filho único recebe do seu Pai, cheio de graça e de verdade. (São João 1. 1 e 14)
[2] Pois, se nos unimos a ele assim em sua morte, certamente também estaremos unidos a Ele em Sua ressurreição (Romano 6, 5); Levamos sempre em nosso corpo a morte de Jesus, para que a vida de Jesus também se manifeste em nosso corpo. (2 Coríntios 4.10); Eu quero conhecer a Cristo e o poder da sua ressurreição e a comunhão dos seus sofrimentos, sendo conformados com ele na sua morte, (Filipenses 3.10); E tendo sido sepultados com ele no batismo, vocês foram ressuscitados com ele pela vossa fé no poder de Deus, que o ressuscitou dos mortos. (Colossenses 2:12)
[3] IRINEU, Santo. Demonstração da Pregação Apostólica, p. 47. Parágrafo 12, capítulo I.
[4] “É verdade que Deus vos proibiu comer do fruto de toda árvore do jardim?” A mulher respondeu-lhe: ‘‘Podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: ‘Vós não comereis dele, nem o tocareis, para que não morrais’. Oh, não! – tornou a serpente – vós não morrereis!” “A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para abrir a inteligência, tomou dele, comeu, e o apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente. (Gênesis 3, 1-6)
[5] “Jejuou quarenta dias e quarenta noites. Depois, teve fome. O tentador aproximou-se dele e lhe disse: “Se és Filho de Deus, ordena que estas pedras se tornem pães”. Jesus respondeu: “Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus” (Dt 8,3).” “Em seguida, o demônio o deixou, e os anjos aproximaram-se dele para servi-lo.” (São Mateus 4, 1-11)
[6] DOGMA DA UNIÃO HIPOSTÁTICA, do grego: ὑπόστασις hypóstasis, composto por duas palavras ὑπό, “por, sob” e ιστημι, “causar ou fazer ficar de pé, estabelecer, firmar”) É um termo na TeologiaCristã empregado principalmente na Cristologia com referência à encarnação para descrever a união das naturezas Divina e humana de Cristo em uma pessoa. (Concílio da Calcedônia, ano 451)
[7] IRINEU, Santo. Demonstração da Pregação Apostólica, p. 48. Parágrafo 12, capítulo I.