1 – Parece que a amizade se funda em qualquer valor de vida suficiente a estabelecer vínculos de convivência entre duas ou mais pessoas, como disse o Filósofo:'(…) qualquer virtude comum é causa de amizade1.
2 – No mais, tudo indica que na amizade encontramos a solidariedade que nos faz condescendente a todas as coisas, sejam boas ou más, como disse outro Filósofo: ‘(….) nenhuma amizade permanece se não tiver apoio; assim, tudo há de se fazer para mantê-la2.
3 – Soma-se, que agradar aos confrades num convívio pacífico e feliz parece ser a ideia da boa amizade.
MAS EM CONTRÁRIO:
Onde há injustiça e mal querência não subsiste a amizade:
‘(…) A INJUSTIÇA FAZ NASCER ENTRE OS HOMENS DISSENSÕES, ÓDIOS E BRIGAS, ENQUANTO A JUSTIÇA ALIMENTA A CONCÓRDIA E A AMIZADE.3’
SOLUÇÃO:
Amizade é uma espécie de aliança para a prática do bem comum e individual.
E tal como aliança, não pode haver verdadeira amizade no conflito entre opostos:
“O CORDEIRO NÃO PODE TER AMIZADE COM O LOBO.” (Eclesiástico 13, 21)
A ‘amizade suicida’ é uma forma de corrupção do amor-próprio, numa voluntária ou involuntária busca pelo convívio com os que conosco não se importam, e nada fazem para reverter acontecimentos e atos que possam nos conduzir a infelicidade ou ruína.
A autêntica amizade está no encontro de vidas num mesmo propósito, ainda que na diversidade das ideias ou pensamentos, como nas notas de uma música, que apesar de diferentes entre si, confluem harmonicamente para o fim único que é a beleza dos sons.
Uma confraria implica na troca que nos acresce com o espírito da fraternidade universal.
Imbuídos desse espírito, não temos medo ou vergonha de buscar ajuda ou consolo; da mesma forma que aquele que é buscado estará sempre disposto a socorrer.
Amizade é o amor-benevolência, pelo qual sempre queremos e trabalhamos para o Bem daqueles que estão inseridos em nossa relação amical.
Esse bem-querer se estende a todos e a tudo que lhe pertence:
“TENDO AMIZADE POR UMA PESSOA, AMAMOS POR CAUSA DELA TUDO QUE LHE PERTENCE, COMO OS FILHOS E TUDO QUE LHE CONCERNE. E TÃO GRANDE PODE SER O AMOR PELO AMIGO, QUE POR CAUSA DELE, SÃO AMADAS TODAS AS PESSOAS QUE LHE DIGAM RESPEITO.4”
É uma relação desse gênero que Deus nos propõe desde o princípio da criação, e que os mártires, os santos, os caridosos e altruístas conseguiram alcançar, pois no Amor Divino, ofertaram sua amizade a todos, indistintamente, não negando nem mesmo aqueles que os odiaram mortalmente.
Logo, o convívio entre os fraternos é uma fração ou reflexo do amor que há entre Deus e a humanidade.
Aquele que come e bebe da nossa mesa, desfruta do suor do nosso trabalho e do nosso tempo pelo prazer que temos de estar em sua companhia, a este, podemos chamar de amigo.
Todavia, há três estágios na amizade:
-
- O interesse;
- A afinidade, e, por fim;
- A virtude.
O primeiro estágio que é o interesse, reside numa troca ou reciprocidade.
É aquela relação de amizade que procura sempre certa correspondência entre o afeto dado e recebido.
Inexistindo ou desaparecendo essa ligação recíproca, também desaparecerá a amizade, pois tal se funda somente numa relação de ganho proporcional, razão porque se extingue quando já não se obtém do amigo aquilo que se quer:
“NÃO CONTRARIA A AMIZADE QUEM PARTILHA, POR AMOR, O BEM QUE CONSERVA EM SI. ISSO MOSTRA MAIS A PERFEIÇÃO DA AMIZADE. PORÉM, É TAMBÉM PRÓPRIO MODERAR AS PAIXÕES DE MODO A NÃO DESEJARMOS ESSES BENS EM EXCESSO5.
O segundo estágio é a afinidade.
Por esta, nos deleitamos na companhia de certos amigos, porque estes pactuam com nossas ideias, gostos, pensamentos e toda espécie de semelhança.
De certo modo, vemos o amigo como se fosse uma extensão de nós mesmos, e nos agradamos, nele, de tudo aquilo que o torna a nossa imagem.
Por outro lado, nele temos dissabor e detestamos tudo que não concordamos ou não nos apraz.
E assim nos tornamos preconceituosos ou intolerantes à sua condição; ou impacientes em dialogar sobre suas escolhas.
Nesse estado, o amigo é apenas o reflexo da afeição e admiração que nutrimos narcisisticamente por nós mesmos.
Procuramos no amigo tudo que se assemelha a nós, rejeitando vê-lo como exatamente é.
É o amor a nós mesmos que projetamos no outro, o que não deixa de ser uma maneira de corromper esse amor-próprio.
Ora, as diferenças podem gerar tensões.
Mas na resolução pacífica dessas tensões é que subsiste o progresso da verdadeira amizade, como nos ensina a Doutrina Social da Igreja Católica:
“O DIÁLOGO SOCIAL AUTÊNTICO PRESSUPÕE A CAPACIDADE DE RESPEITAR O PONTO DE VISTA DO OUTRO, ACEITANDO COMO POSSÍVEL QUE CONTENHA CONVICÇÕES OU INTERESSES LEGÍTIMOS. A PARTIR DA PRÓPRIA IDENTIDADE, O OUTRO TEM ALGO PARA DAR, E É DESEJÁVEL QUE APROFUNDE E EXPONHA A SUA POSIÇÃO(…); COM EFEITO, NUM VERDADEIRO ESPÍRITO DE DIÁLOGO, NUTRE-SE A CAPACIDADE DE ENTENDER O SENTIDO DAQUILO QUE O OUTRO DIZ E FAZ, EMBORA NÃO SE POSSA ASSUMI-LO COMO UMA CONVICÇÃO PRÓPRIA. DESTE MODO, TORNA-SE POSSÍVEL SER SINCERO, SEM DISSIMULAR O QUE ACREDITAMOS, NEM DEIXAR DE DIALOGAR, PROCURANDO PONTOS DE CONTATO E SOBRETUDO, TRABALHAR E LUTAR JUNTOS.“6
Já a amizade enquanto virtude, sendo o seu último e mais perfeito estágio, significa a reciprocidade no ato de amar, independente das afinidades ou dos interesses.
Embora a afinidade e o interesse nos aproximem, é certo que não são suficientes para nos conservar ou fazer evoluir em nós a relação de amizade a um nível em que estes se tornem totalmente secundários, no que então se responde as questões acima:
1 – Os valores de vida são diferentes em cada indivíduo, e cada um deles mantém e preserva os que achar conveniente, segundo suas escolhas e propósitos.
Há os que valorizam a justiça; a caridade; a fraternidade; a verdade; enquanto outros valorizam o ganho a qualquer custo; o amor-próprio como bem maior e as vantagens que são geradas das práticas injustiças.
Todavia, a amizade não nasce, nem se fortalece ou se conserva no tirar do outro aquilo que é seu por justiça, mas nas virtudes que nos irmanam, as quais também nos permitem compartilhar o Bem individual, sem prejuízo do Bem coletivo.7
2 – Conservar a amizade a qualquer preço é característica daqueles que a querem para o seu próprio deleite ou apenas por aquilo podem usufruir dos amigos.
Se pode, na amizade, dizer coisas que machucam, mas que são necessárias a evitar que os amigos obrem em seu próprio desastre; tanto quanto na inimizade dizer coisas afáveis, mas que levarão os outros à ruína.
Entre os confrades é natural a busca pelo que é mutuamente agradável, evitando o que seja desgostoso e conflituoso, mas desde que isso se mostre possível.
Por isso, tal regra não pode ser aplicada, quando implicar de algum modo no desvirtuamento do Bem comum ou individual8.
Conservar um amigo a qualquer custo, apenas por nosso deleite ou por aquilo que podemos usufruir dele, não é amizade, mas puro egoísmo.
3 – A autentica amizade está na felicidade recíproca em fazer feliz o amigo.
Mas isso não implica em lhe agradar a qualquer custo.
Obviamente, não podemos furtar ou roubar para que isso seja útil e rentável aos nossos amigos.
O verdadeiro amigo inspira bons pensamentos.
Nos modela para as boas ações.
Nos anima com suas boas palavras.
Não age com dissimulação, nem atua objetivando manipulação.
Não nos incita a capacidade para o mal com palavras, atos ou posturas:
‘NÃO FAÇAS AMIZADE COM UM HOMEM COLÉRICO, E NEM ANDES COM OS VIOLENTOS.’ (Provérbios 22, 24)
“HÁ, PORÉM. O AMIGO QUE O É SÓ DE NOME, NÃO NA DOR QUE DURA ATÉ A MORTE. É MARAVILHOSO RECEBER DEMONSTRAÇÃO DE BOA AMIZADE, AS QUE SEJA EM TODAS AS CIRCUNSTÂNCIAS, E NÃO SOMENTE QUANDO ESTOU CONVOSCO.’ (GÁLATAS 4, 18)
É impossível agradar sempre.
Mas é possível sempre agir no auxílio a quem desejamos o Bem.
‘MELHOR É A CORREÇÃO MANIFESTA DO QUE UMA AMIZADE FINGIDA.’(PROVÉRBIOS 27, 5)
1ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
2MAQUIAVEL. O Príncipe. Cap. 19.
3PLATÃO. A República. p. 46.
4AQUINO. SANTO Tomás. Suma Teológica. Q 23 art. 1° Livro II e II ae
5 AQUINO. SANTO Tomás. Suma Teológica. Q 31 art. 1° Livro II e II ae
6 FRATELLI TUTTI. Encíclica do PAPA FRANCISCO.
7AQUINO. SANTO Tomás. Suma Teológica. Q 58 art. 11, Livro II e II ae
8AQUINO. SANTO Tomás. Suma Teológica. Q 31 art. 1° Livro II e II ae