1 — Parece que a ira, sendo reação aquilo que injustamente sofremos e contra aqueles que injustamente nos agridem, conduz à justiça, pois como diz a Escritura: “Olho por olho; dente por dente; mão por mão.” (Êxodo 21. 24)
Logo, não há mal na ira.
2 — No mais, supõe-se que a ira componha a personalidade Divina, como elemento de sua justiça. E sendo que em Deus não pode haver pecado, logo, não seria pecado a ira.
3 — Soma-se, que sendo o Filho a imagem perfeita do Pai, as Escrituras testemunham que Jesus usou do chicote contra os vendilhões do templo e os falsos profetas[1], no que se conclui que a ira ou desforra não seja pecado, mas virtude Divina, como está escrito:
COM O HÁLITO DE DEUS PERECEM; E COM O SOPRO DE SUA IRA OS CONSOMEM.” (Jó 4.9)
“DERRAMA SOBRE ELES A TUA INDIGNAÇÃO, E, PRENDA-OS O ARDOR DA TURA IRA.” (Salmos 69.24)
MAS EM CONTRÁRIO:
A ira é um mal porque consiste na desordem no desejo de justiça transformado em vingança. E, sendo Deus perfeito, nele não pode haver desordem, mas equilíbrio, e, portanto, nele não há ira:
AMARGURA, IRA, CÓLERA, BLASFÊMIA E TODA MALÍCIA SEJAM TIRADAS DENTRE VÓS.” (Efésios 4.31)
A IRA E O ÓDIO CONVÉM NO MESMO EFETO, POIS UMA E OUTRO NOS CAUSAM DANO. O ÓDIO TEM O MAL COMO OBJETO. LOGO, TAMBÉM A IRA.” (AQUINO. Santo Tomás. Suma Teológica, Q 81, art. 3 Livro I)
SOLUÇÃO:
A ira em nós é uma resposta sentimental, passional, e que frutifica em nossa sensibilidade como reação natural de revolta e desejo de revanche em retribuição à uma agressão que nos atinge naquilo que amamos, independente de ser bom ou mal o objeto desse amor.
Como reação sensível, a ira é desmedida, impulsiva e incontrolável porque tem como combustível o rancor e o ódio que surgem como reflexo da mágoa, a qual desordena em algo maléfico por cegar o pensamento racional, alheando-se da proporção, equilíbrio e satisfação, pois é sempre maior e mais intensa que a própria lesão sofrida pelo irado, e em regra, lhe causará maior dor maior que aquela a qual experimentou.
Por isso o ato irado se opõe a justiça, pois justiçar é dar a cada um conforme o mérito ou demérito, na medida, peso e proporção.
Onde há justiça não há ira; e onde há ira não pode haver justiça porque ira é a justiça aplicada com ódio, razão porque em Deus não há ira, no que se responde as questões.
1 — Toda ira causa certa frustração em razão do sentido de dano não reparado ou da necessidade imoderada da desforra contra o agressor, a qual nunca sacia.
Quem mata o algoz do seu filho pode obter prazer aparente, mas com o tempo esse prazer não mais lhe satisfará, permanecendo os efeitos incessantes da dor que o levará a buscar novas desforras, agora, talvez matando alguém que não participou dessa história, ou então, causado mal ao filho do algoz de seu filho, que poderá também se irar e reagir, e assim, sucessivamente.
Olho por olho, dente por dente!
Acabaremos todos cegos e banguelas.
Por isso, a lei mosaica do revide restou abolida pela Lei da justiça que se realiza através da pacificação, quando Cristo diz para oferecermos a outra face (Lc 6. 29-), e não reagirmos a desonra com desonra; a humilhação com humilhação e a violência com violência, pois assim causaremos em nós mesmo um mal maior que o próprio ofensor:
“COMO SE O HOMEM PUDESSE TER INIMIGO MAIS PERNICIOSO QUE O ÓDIO COM QUE SE IRRITA, OU COMO SE PUDESSE CAUSAR A OUTREM MAIOR DANO, PERSEGUINDO-O, DO QUE CAUSA AO SEU PRÓPRIO CORAÇÃO, ODIANDO! COM CERTEZA, NÃO NOS É MAIS ÍNTIMA A CIÊNCIA DAS LETRAS, DO QUE A CONSCIÊNCIA QUE MANDA NÃO FAZER A OUTREM O QUE NÃO QUEREMOS QUE NOS FAÇAM.” (AGOSTINHO. SANTO. As Confissões. p. 11.III par. CAPÍTULO XVIII).
A ira se alimenta do ódio, mas se extingue na sabedoria dos pacificadores que hão de herdar a terra e o céu:
“(…) ABENÇOAI OS QUE VOS MALDIZEM E ORAI PELO QUE VOS INJURIAM. AO QUE TE FERIR NUMA FACE, OFERECE-LHE TAMBÉM A OUTRA. O QUE QUEREIS QUE OS HOMENS VOS FAÇAM, FAZEI-O TAMBÉM A ELES. SE AMAIS SÓ OS QUE VOS AMAM, QUE RECOMPENSA MERECEREIS? TAMBÉM OS MAUS AMAM AQUELES QUE OS AMAM.” (São Lucas 6. 28-31)
2 — Existe notável distinção entre aquilo que se diz ira Deus e a ira humana.
Diferente do ser humano, a ira não está em Deus como imperfeição, mas como virtude.
Ensina Santo Tomás:
“NÃO SE ATRIBUI A IRA A DEUS COMO PAIXÃO DA ALMA, MAS COMO JUÍZO DA RETA JUSTIÇA.” (Suma Teológica, Q 47 art. 2 L Ia IIa).
Em sua natureza Divina, Deus é impassível, ou seja, nele não há emoções, comoções ou fatores sentimentais próprios dos seres sensíveis, os quais ordene seus atos.
Aquilo que se diz ira de Deus é sua perfeita justiça, que não visa pagar o mal com o mal, mas tirar do mal a consciência de sua deformação para nos levar a buscar pelo Bem.
Não se imputa a justiça de Deus sobre os indivíduos outro objetivo, senão, o aperfeiçoamento que conduz ao equilíbrio, e por seu turno, à bondade.
A justiça de Deus, além de reparar o mal com o Bem, objetiva reprimir o infrator, dando-lhe pelo conhecimento experimental do sofrimento, a noção de que ninguém está isento dos efeitos do próprio mal que pratica.
Já a ira humana que nos deixa a mercê do sentimento de revanche é desprovida da razão superior, e implica retribuir um mal com outro ainda maior:
“IRA HUMANA É DESEJO DE VINGANÇA. O MOTIVO QUE IDENTIFICA A IRA É A SATISFAÇÃO POR REALIZAR A PUNIÇÃO. MAS ESSE MOTIVO, CORROMPIDO PELO ÓDIO, ACABA NÃO IDENTIFICANDO AS CONSEQUENCIAS DE SE AGIR CONTRA A VONTADE E A JUSTIÇA DIVINA.” (Suma Teológica, Q 81, art. 4 Livro I).
A justiça perfeita só pertence a Deus, pois só nele há perfeita harmonia entre misericórdia e castigo:
“A IRA DO HOMEM NÃO CUMPRE A JUSTIÇA DE DEUS.” (São Tiago 1, 20)
“A IRA QUE TRANSGRIDE A ORDEM DA RAZÃO, SE OPÕE A MANSIDÃO.” (Q 15, art. 9 Livro III, Suma Teológica).
No mais, a palavra ira atribuída a Deus nas Escrituras deve ser compreendida, e, portanto, interpretada no sentido de JUSTIÇA DIVINA, como a Igreja ensina há mais de dois mil anos: “Não vos vingueis uns aos outros, caríssimos, mas deixai agir a ira de Deus, porque está escrito:
A MIM A VINGANÇA; A MIM EXERCER A JUSTIÇA, DIZ O SENHOR.“ (Deuteronômio 32,35)
3 — A crueldade do delito não pode ser substituída pela crueldade da punição.
Todavia, há castigos cruéis com penas brandas; e castigos brandos com penas severas.
Um castigo suave aplicado dolosamente ao inocente é violência imensa, exercida por uma justiça parcial que julga com ódio ao sujeito, e não na proporção dos fatos.
Noutra situação, castigos brandos com penas proporcionais servem de advertência para que não se reincida nos mesmos delitos, e se coloca à mercê de castigos maiores e piores.
Aquele que enriquece mercantilizando com a fé, e pela mentira explora e desvia inocentes do caminho do verdadeiro Evangelho, e por conta da ganância transforma Deus num negócio, mereceria como punição a pior das dores.
Logo, expulsão do templo a chibatadas foi uma justiça branda, necessária e proporcional NAQUELE MOMENTO, pois se houvesse ira em Cristo, como resultado do ódio ao ato de justiçar, ele os teria ceifado a vida natural e eterna que é a pior das penas.
Mas como ele ensinou aos Apóstolos:
VENDO ISSO, TIAGO E JOÃO DISSERAM: – SENHOR, QUERES QUE MANDEMOS QUE DESÇA FOGO DO CÉU E OS CONSUMA? JESUS VOLTOU-SE E REPREENDEU-OS SEVERAMENTE. NÃO SABEIS QUE O FILHO DO HOMEM NÃO VEIO PARA PERDER AS VIDAS DOS HOMENS, MAS PARA SALVÁ-LAS?“ (São Lucas 9. 53-56)
Embora em Cristo sua natureza Divina fosse impassível, sua natureza humana era sensível as emoções.
Contudo, tais emoções, as paixões e os impulsos nele eram perfeitamente equilibrados, porque ele é o homem perfeito, incorrupto e incorruptível.
Nele não há ira humana, pois sendo imagem perfeitíssima do Pai, sua justiça é perfeita, na qual a misericórdia precederá a punição, sendo o zelo pela Casa de Deus, o zelo pelas verdades Divinas que nele são depositadas.
“O APETITE DE VINGANÇA É ACOMPANHADO DO PECADO QUANDO ALGUÉM PROCURA VINGAR-SE FORA DA ORDEM DA RAZÃO. DESSE MODO, NÃO PODE HAVER IRA EM CRISTO, CHAMADA IRA POR VICIO. ALGUÉM É DEVORADO PELO ZELO DA CASA DE DEUS, QUANDO DESEJA EMENDAR TODAS AS COISAS PERVERSAS. ESSA IRA EXISTIU EM CRISTO.” (Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino, III, q. 15, a. 9, rep.)
[1] “Estava próxima a Páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém. Encontrou no templo os negociantes de bois, ovelhas e pombas, e mesas dos trocadores de moedas. Fez ele um chicote de cordas, expulsou todos do templo, como também as ovelhas e os bois, espalhou pelo chão o dinheiro dos trocadores e derrubou as mesas. Disse aos que vendiam as pombas: “Tirai isto daqui e não façais da casa de meu Pai uma casa de negociantes”. Lembraram-se então os seus discípulos do que está escrito: O zelo da tua casa me consome (Sl 68,10).”
São João, 2 – Bíblia Católica Online
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