SE NO CÉU AINDA SERÁ NECESSÁRIA A FÉ.

1  — Parece que no céu ainda será necessário crer, pois o céu é o lar de Deus, e para estar perto de Deus é necessário que se creia nele.[1] Por isso, os anjos confirmados na beatitude e os santos confirmados na salvação ainda guardam a fé.

2 — No mais, no estado de pureza, Adão e Eva[2] foram expulsos dos jardins sagrados e muitos anjos precipitados à terra[3] porque tornaram-se infiéis, o que demonstra a necessidade da fé, mesmo para os que habitam nas regiões celestiais.

3 — Além disso, sem fé é impossível agradar a Deus.[4]

MAS EM CONTRÁRIO, disse o Santo Apóstolo que a fé é a certeza daquilo que esperamos e das coisas que não vemos.[5]  

Ora, os que morreram no tempo a fim de ressuscitarem na eternidade com Cristo possuem agora a visão contemplativa de Deus, OBTENDO A CERTEZA POR AQUILO QUE VEEM, pois aos santos do céu é dado verem a Deus face a face[6], sendo que a certeza daquilo que se vê já não é fé, mas constatação.

SOLUÇÃO: Os que respondem que nos salvos que ressuscitarão para vida eterna e nos anjos confirmados na beatitude não mais subsiste a necessidade da fé, respondem acertadamente, conforme ensina a Igreja de Cristo.

Ora, todo vício se combate com uma virtude oposta.

A virtude da humanidade que não viu e creu, redime o vício da humanidade que viu, mas não confiou, e não creu.

Nisso restou dito por Cristo: “ – TU CRÊS PORQUE VISTES. FELIZ O QUE NÃO VIU, E CREU.” [7]

Os anjos e os primeiros pais em seus estados primitivos viam Deus, e o contemplavam ainda que não absolutamente, naquilo que ele é. Todavia, não confiaram nele, e, portanto, não creram em suas palavras, atos e intenções, e, assim, menosprezaram sua vontade, criando as condições para se separarem dele.

Mas a descendência desses primeiros pais que creria em Deus sem jamais tê-lo visto, pela graça Divina, recriaria as condições necessárias para o retorno à pátria celestial. E lá, os que usufruem da vida eterna não necessitam crer porque já podem ver e estar com Deus frente à frente em sua presença.

O objeto da fé é buscar o ato primeiro, a verdade primeira de todas as coisas; a verdade suprema que não se vê, não pode ser captada pelos sentidos, e nem está ao alcance da razão natural corrompida pela imperfeição e dominada pelos baixos instintos,[8] “[…] POR ONDE É MANIFESTO QUE A FÉ NÃO PODE TER POR OBJETO O QUE É VISÍVEL, SEJA ESTE SENSÍVEL OU INTELECTUAL.[9]

Essa verdade é Deus, está em Deus e só pode ser reconhecida quando ela mesma se revele ao indivíduo,[10] e lhe confira o dom pelo qual se crê e se confia na verdade que não pode ser vista diretamente, como disse o sábio: “[…] O OBJETO DA FÉ É A VERDADE PRIMEIRA, PORQUE NADA CAI SOB O DOMÍNIO DA FÉ, SENÃO, ENQUANTO ORDENADO POR DEUS.”[11]

Assim, a fé nesta vida são os olhos da alma que suprem a visão deficiente dos sentidos e a limitada compreensão da razão que nos priva da visão contemplativa da verdade primeira que é Deus, a qual, no estado de pecado só podemos vê-la em enigmas ou indiretamente em Cristo, por suas obras, atos e pelas realidades por ele instituídas: “[…]  E SE NÃO PUDERES CRER EM MIM, CREDE NAS MINHAS OBRAS, PARA QUE SAIBAIS E RECONHEÇAIS QUE O PAI ESTÁ EM MIM E EU ESTOU NO PAI.” (São João 10, 38)”

Mas se a fé é necessária para se chegar a Deus, uma vez que o vemos e o contemplamos frente a frente na eternidade, onde teremos a perfeição dos sentidos e uma consciência superior, já não interagiremos com ele à distância, por visão obscura e enigmática, senão por uma realidade próxima, visível e tangível com a qual nos comunicaremos diretamente, sendo desnecessária assim, a fé nos sinais, obras e nos enigmas para vê-lo, reconhecê-lo e falar com ele.

Neste dia, veremos que Deus falará conosco e ao nosso lado, e não morreremos, pois ao contemplá-lo viveremos para sempre.[12] Deus chama os eleitos para a vida eterna. Só então descansaremos das dores, e o veremos, e o amaremos plenamente, no que se responde as questões acima:

1 —  Como dito na solução da questão, na vida contemplativa, a fé já não subsistirá porque cumpriu sua missão nesta vida, de nos fazer alcançar a eternidade. E na eternidade subsistirá apenas o amor, pois quem não ama não conhece a Deus, e se não o conhece é porque não pode vê-lo vez que: “AQUELE QUE NÃO AMA, NÃO CONHECE A DEUS PORQUE DEUS É AMOR.” (I São João 4, 8); “BEM-AVENTURADOS OS PUROS DE CORAÇÃO, PORQUE ELES VERÃO A DEUS.” (São Mateus 5,8)

Logo, os santos que lograram absolvição no juízo final e os anjos que desde os primórdios manifestaram sua livre adesão a Deus, confiando, seguindo e obedecendo-lhe, possuem a felicidade plena porque podem ver Deus em toda sua beleza, bondade e esplendor, e por isso é dito que a fé é apenas POR AGORA, no tempo presente e não no porvir: “[…] AGORA, POIS, PERMANECEM A FÉ, A ESPERANÇA E O AMOR, MAS QUE DESTES, “[…] O AMOR É MAIOR (I Coríntios 13,13)

No céu, para estarmos perto de Deus precisaremos apenas do amor.

Só o AMOR PERMANECERÁ PORQUE DEUS É AMOR, E DEUS É ETERNO, e quem permanece eternamente em Deus, permanecerá eternamente no amor,[13] e por causa do amor, constataremos que Deus existe, porque o veremos finalmente, sem a visão ofuscada que tínhamos dele pela fé quando ainda não redimidos do pecado, o que tornava necessário crer e confiar se não o víamos.

Na eternidade, confiaremos e creremos no que veremos, pois: “O ESPÍRITO SANTO PREPARA O HOMEM PARA O FILHO DE DEUS, O FILHO O CONDUZ AO PAI E O PAI LHE CONCEDE A INCORRUPTIBILIDADE E A VIDA ETERNA QUE DECORREM DA VISÃO DE DEUS.” [14].”

2 —  Na plenitude dos tempos não mais estaremos privados da visão plena de Deus, e, portanto, não haverá distância entre humanidade e Divindade, pois as imperfeições e incompletudes que nos separavam restaram definitivamente extintas pelos méritos de Cristo, e na comunhão com sua humanidade, seremos restaurados a uma perfeição superior, acima do natural, por onde confirmados nessa adesão a Deus, não mais nos sujeitaremos às tentações e pecados porque o novo homem será semelhante a Cristo, que tentado no deserto não sucumbiu: “[…] NA PÁTRIA, A VISÃO SERÁ A DA VERDADE PRIMEIRA, COMO ELA É EM SI MESMA, E CONFORME A ESCRITURA: QUANDO ELE APARECER, SEREMOS SEMELHANTE A ELE, PORQUANTO O VEREMOS BEM COMO ELE É. [15].”

Mas para chegarmos a essa perfeição será preciso uma certa escolha.

Também assim foi no início dos tempos, pois os anjos, Adão e Eva possuíam uma perfeição natural, mas não viam Deus em toda sua plenitude[16], e desconheciam muitas de suas virtudes, inclusive, a da justiça. Suas escolhas determinariam se iriam ascender a perfeição superior, e assim atingir a vida eterna na morada definitiva na pátria celestial; ou se regrediriam ao estado inferior no qual foram criados, assumindo a imperfeição, e sujeitando-se a morte.

Escolhendo a vida sem Deus, além de não serem confirmados na perfeição extraordinária e na vida eterna, perderam a perfeição natural que se não lhes permitia ver Deus em essência, também não lhes retirava totalmente a visão Divina. Adão, Eva e os anjos no estado de criação originários precisavam da fé porque ainda não confirmados em suas escolhas, e, escolhendo mal por infidelidade, foram privados da beatitude que lhes permitiria a visão plena de Deus, sendo também privados da vida eterna, perfeição e do direito à morada celestial.

3 — Sem fé é impossível agradar a Deus nessa vida porque se não o vemos, temos que confiar em suas palavras, e para confiar há de se ter fé, e se não cremos não confiamos, e nenhum pai se alegra na desconfiança do filho. Mas no céu o veremos, e testemunharemos aquilo que dele nos fora dito, e “[…] OS HOMENS VERÃO A DEUS PARA VIVER, TORNANDO-SE IMORTAIS POR TAL VISÃO E ALCANÇANDO A DEUS […] QUE SERÁ VISTO PELOS HOMENS QUE POSSUEM O SEU ESPÍRITO E ESPERARAM, SEM CESSAR, A SUA VINDA.” [17]


[1] “[…] pois quem dele se aproxima precisa crer que ele existe e que recompensa aqueles que o buscam. (Hebreus 11. 6)

[2] “E o Senhor Deus expulsou o homem do jardim do Éden.” (Gênesis 3, 24 a 26)

[3] “Subirei sobre as nuvens mais altas e me tornarei igual ao Altíssimo. Entretanto, eis que foste precipitado à morada dos mortos, ao mais profundo abismo. Então, caíste dos céus, astro brilhante, filho da aurora! Então, foste abatido por terra, tu que prostravas as nações! Debaixo da terra se agita a morada dos mortos, para receber-te à tua chegada.” (Isaías 14. 9, 12, 13 e 14)

[4] Hebreus 11.6

[5] “Ora, a fé é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos.” (Hebreus 11,1)

[6] “Procurai a paz com todos e ao mesmo tempo a santidade, sem a qual ninguém pode ver o Senhor. (Hebreus 12, 14)”

[7] São João 20.29.

[8] Os baixos instintos são a matéria prima para toda imperfeição: São eles, os pecados capitais, dentre outros, tais como a ira, a luxúria, a gula, a avareza, a violência, enfim, toda desordem sensível que coloca a razão sob o seu domínio: “Assim, pois, de um lado, pelo meu espírito, sou submisso à Lei de Deus; de outro lado, por minha carne, sou escravo da Lei do pecado. (Romanos 7, 26)

[9] AQUINO, Santo Tomás. Suma Teológica Q 1, art. 4. Livro II e IIIae (parte).

[10] CATECISMO V.26.4 § 1.028.

[11] AQUINO, Santo Tomás. Suma Teológica Q 1, art. 1. Livro II e IIIae (parte).

[12] Moisés, sendo pecador, quando Deus se mostrou a ele cobriu o rosto porque ao pecado não remido do pecado, ver Deus significa morrer. Mas pela misericórdia aplicada a Moises, foi possível a ele ver Deus e não morrer, do que então é dito:

[13] “Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor.” (I São João  4,8); manifestei-lhes o teu nome, e ainda hei de lhes manifestar, para que o amor com que me amaste esteja neles, e eu neles.” (São João 17, 26)”

“Permanecei em mim, que Eu permanecerei em vós. (São João 15,4)

[14] IRINEU de Lion. SANTO, Contra as Heresias, p. 203, anos 120-170. Livro IV)

[15] AQUINO, Santo Tomás. Suma Teológica Q 1, art. 2. Livro II e IIIae (parte).

[16] AQUINO, Santo Tomás. Suma Teológica Q 94, art. 1. Livro Ia (parte)

[17] IRINEU de Lion. SANTO, Contra as Heresias, p. 204, anos 120-170. Livro IV, parágrafo 20,6.

 

Social media & sharing icons powered by UltimatelySocial